PRIMAVERA NO PARQUE
Nos encontrávamos uma ou no máximo duas vezes por semana.
Os horários eram os mais variados, parecia que havia uma sintonia, as vezes de manhã cedinho quando a névoa e o friozinho ainda não haviam se dissipado, outras durante o modorrenta tarde calorosa e, as vezes, ao cair da noite fresca.
Nossos encontros duraram alguns meses, não me recordo quantos, hoje me parecem anos. Conversávamos sentados em um banco, ou caminhando por entre as flores e veredas do parque. É preciso dizer que não era exatamente um parque, talvez estivesse mais para uma praça, porém, para uma criança, as quatro entradas que formavam como que uma cruz, um centro de quatro árvores frondosas agrupadas em meio ao concreto que do lado de fora engolia tudo. A estátua do caudilho de plantão ao centro da praça, majestosa e sombria. O movimento das pessoas apressadas, dos automóveis apressados pelas pessoas e, o improvável silêncio no interior da praça, dava a nítida sensação de que se tratava de um parque.
Ao fim de uma hora de conversa, não importava o momento do encontro, meu mestre (chamemos assim) se levantava, sorria imóvel e despedia-se suavemente. Íamos então, cada um para sua direção. Em minha cabeça, ao menos na época, prendia-se sua forma de vestir-se. Era uma maneira de vestir-se esquecida, sim tão sóbria que era impossível recordá-la.
Na grande maioria das vezes, ele não falava muito. Contava-me coisas, alcançava lembranças, esquecia tristezas e criava memórias. Enquanto conversávamos, não me falava apenas com as palavras, sua fala correspondia ao ritmo de seus olhos, na verdade, seu olhar parecia me convidar para outros mundos, marcando o tempo de nossa conversa. Um tempo que vinha de onde eu não estava e que me levava para onde eu não desejava. Um tempo incontável de aberturas e descobertas.
Havia – mais do que tudo – os largos silêncios, que evocavam os sons de sua mente, libertados por seu olhar.
Eu saía de casa, tomava a rua que ladeava ao parque, sabendo de antemão que iria encontrá-lo. Podia vê-lo de longe e sempre me parecia um pouco inquieto, não sei se por esperar por mim ou por outras esperas. O terminal de ônibus ao lado do parque sempre mostrava seu espetáculo humano, onde vendedores de loteria misturavam-se com vendedores de comida e mulheres da vida, além é claro, daqueles que trabalhavam, sonhando em conseguir na loteria uma vitória para melhorar seu repasto e poderem deitar-se com uma mulher que cobrasse mais caro. O olhar do meu mestre sempre parecia depositado neste ponto até que eu o interrompesse.
É incrível como hoje penso naquele ponto, na pequena loja de livros (não se pode chamar de livraria) e no armazém que ficava ao lado e que visitamos uma vez e me parecem souvenires de outra época.
- Nesta livraria (assim se referia o mestre) viveu um grande escritor. Partiu do país e nunca mais voltou, nem seus livros voltaram.
- Você viveu por aqui também?
- Aqui e ali, sobrevivi em todos os lugares, por estas ruas e outras mais distintas. Muito distintas – disse olhando-me nos olhos.
- E eram amigos, você e o escritor?
- Amigos durante o dia, companheiros ao anoitecer. Conhecíamos o parque e o entorno, suas delícias e perigos. Vivíamos errantes e errando.
Um dia o parque encheu-se de indígenas e camponeses sem terras. Unidos por um ideal comum, os primeiros por terem suas terras usurpadas, os segundo por nunca terem tido terras. O lugar mudou completamente, essas pessoas viviam ali, cobrindo com suas misérias os aromas e texturas do parque. Eram muitas e o parque parecia pequeno, pela primeira vez transmutando-se em praça.
Homens, mulheres e crianças que ali viviam sua vida de violência, a violência da miséria e usura humana.
Ele os olhava deslocar-se, detidamente e em seus olhos pude ver a verdadeira piedade humana. Nos olhos vivos daquele senhor de estórias, em face ao espetáculo de dor que se fez presente frente à nós, vi a piedade humana.
Durante esses dias, quase deixamos de nos encontrar, entretanto, enquanto durou aquela presença nossas conversas tornaram-se sombrias como um romance inacabado.
- O ser humano é sempre o mesmo. Seu sofrimento é o mesmo, desde as neves de Boston até o calor de Havana.
- Mas, é aqui nesta terra, que dói em mim. Respondi sem pensar.
Encarou-me com certa surpresa, não creio que esperasse esta resposta de alguém tão jovem. Embora fosse a mais pura verdade.
- É assim, é assim mesmo meu filho.
Fechou-se em si mesmo, seu silêncio embebido em recordações e memórias distantes.
- Triste terra, triste terra. Tu vais morrer.
- Como senhor?
Voltou-se para mim – Tu vais morrer. Um verdadeiro amigo é aquele que te alerta disso.
Com um sorriso curto me apertou o ombro e partiu em direção ao ponto de ônibus. Parou, creio que já não me via, observou um momento, tomou o coletivo e se foi.
Hoje toda aquela experiência humana desperta nas ruelas e parques, entrelinhas e páginas, da cidade que me escolheu como filho, bate desesperadamente em meu peito enquanto as horas se findam, as guerras continuam, a miséria se alastra, as marés sobem e sofrem sempre os mesmos.